27 de out. de 2015

Medos nossos de cada dia

É incrível o quanto que à medida que atendemos mais e mais casos diferentes (mas nem tanto!), passamos a ter um conhecimento maior até do que o paciente está pensando. Nós, terapeutas, do lado de cá, vamos descrevendo para o paciente, sofrendo do lado de lá, o que ele está sentindo, como o cérebro dele se comporta diante do medo e como ele lida com o mundo quando está aprisionado no trauma. Ele pensa que é o único a sentir aquilo tudo, a perder o controle, a não conseguir raciocinar direito e a saber tudo na teoria, mas na prática é um fracasso. Daí enquanto vamos descrevendo como se sente, ele vai se identificando com as características. Então podemos lhe dizer: "Você não é o único!"

Quem viveu algum trauma, pequeno ou grande, e percebe as consequências que este episódio teve na sua vida, não se dá conta que no mundo à sua volta, milhares de pessoas passam pela mesma situação diariamente. Claro que cada um vivencia as situações iguais de forma diferente, mas a impossibilidade de lutar contra aquilo, de mudar o que sente, de agir diferente é igual pra todo mundo. O cérebro é incrível mesmo! E nós conseguimos doutriná-lo durante a terapia de EMDR, durante o período de reprocessamento, em que o terapeuta ajuda o paciente a entrar em contato com suas dores e dessensibilizar tudo, reprocessando a lembrança, que vai perdendo força, cor, presença e importância.

Acho tão maravilhoso quando me relatam que não conseguem mais acessar a lembrança difícil, ou que ela parece menos colorida, parece uma foto estática, o som sumiu, mudou alguma parte da cena etc. São as adaptações que o cérebro faz durante o reprocessamento, para curar a ferida, torná-la desimportante, sem o peso que sempre teve. Sempre explico que o que aconteceu, não pode ser mudado. Mas durante os movimentos bilaterais, o cérebro "cria" uma nova imagem em cima da imagem que realmente aconteceu. A partir desta criação, muitas vezes o paciente perde acesso à imagem original, pois neste momento, não importa se aconteceu ou não, o que importa é o que o cérebro está guardando como memória e é isso que vai valer daqui pra frente. Mesmo que seja algo inventado, uma mentira, digamos assim. Aquela velha frase: Uma mentira que é repetida muitas vezes, se torna uma verdade. Pro cérebro é assim. Se ele acredita naquilo, é a verdade. É só o que importa. Aqui se faz a cura. Para muitos pacientes isso nem é necessário acontecer. Os insights que vêm, são tão reconstruidores do ego e daquilo que estava abalado, que apenas o distanciamento da cena já é suficiente.

Mas lembre-se, um trauma não foi vivido apenas com uma imagem. Todos os nossos sentidos estavam aguçados naquele momento de medo. Visão é a principal, mas às vezes ela nem está tão presente assim, pois pode ter acontecido no escuro e a pessoa não ter podido ver nada, só sentir. E por isso os outros órgãos dos sentidos fazem o papel de guardar também as impressões do momento: o tato (um toque? um tapa? uma carícia? um apertão?), o cheiro (da pessoa? do lugar? da comida?), o som (de passos? de voz ou vozes? do mar? de uma fábrica?) e o gosto (do hálito do outro? de um alimento? uma bebida? outro objeto?). E é por isso que não podemos apenas trabalhar a imagem da cena (se houve uma) sem trabalhar todos estes detalhes captados pelos demais órgãos. O grau de perturbação só vai zerar quando zerarmos todas as más percepções que os 5 sentidos fizeram daquele momento.

Para quem trabalha com EMDR isso é muito claro. Pena que não é tão claro para as demais linhas teóricas, que fazem o paciente ficar falando, falando e falando daquilo que vivenciaram, sem se darem conta que assim ativam apenas a lembrança da imagem, da dor sentida, que muitas vezes precisa ser revivida mil vezes durante meses ou anos de sessões com pouco resultado. Com o EMDR, focamos, atingimos o alvo, limpamos a ferida e permitimos que as emoções cicatrizem sem deixar marcas.